Túnel do tempo: A Música fala a Deus

Era um sobrado cinzento, no Campo de São Cristóvão, igual a muitos prédios do bairro, um edifício armado erguido entre o casario da velha praça. Mas diferente de todos, pois era a casa de Deus”. Na porta de entrada, o convite bíblico: “Jesus disse: Vinde porque tudo já está preparado”. (Lucas 14.17)

Rio de Janeiro, bairro de São Cristóvão. A Segunda Guerra Mundial havia findado na Europa, e os pracinhas da Força Expedicionária Brasileira voltam ao Brasil como heróis. Na então Capital do país, o clima era de alívio e desejo de liberdade política. O fim da ditadura do Estado Novo estava próximo.

Nesse contexto de agitações nacionais e internacionais, a equipe da Revista da Semana, uma das principais publicações da época descreveu o culto na Assembleia de Deus em São Cristóvão no distante mês de julho de 1945. 

Intitulada de A Música fala a Deus, aos leitores cariocas é descrito um dos cultos da igreja pioneira do movimento pentecostal na capital federal. Além de inédita para as novas gerações de crentes, a matéria é importantíssima para se relembrar o antigo templo de São Cristóvão, a composição social dos seus membros e os principais momentos de um culto assembleiano há 70 anos.

AD em São Cristóvão (RJ) década de 1940
Fora do salão de cultos havia a frenética agitação de carros, bondes e ônibus, “a luta dos homens”, porém dentro do simples templo “a paz do Senhor”. Não havia naquela casa de oração “requintes de arte ou florões de luxo”, as “paredes eram nuas” e despojadas de beleza. “Tudo é singelo e natural” sem a “grandiosidade opressora” das antigas catedrais. Longe de querer apresentar ostentação, os templos eram simples como a fé dos crentes.

Os jornalistas adentram o recinto guiados por Emílio Conde. Ao avistar o púlpito, observam curiosos uma orquestra “heterogênea” composta por pessoas de várias idades, que com seus instrumentos musicais executavam hinos de louvor a Deus. Cânticos e hinos se ouviam na congregação atenta a tudo o que se passava no culto. Contudo, uma surpresa estava reservada aos visitantes...

“Em frente ao coro o maestro, um jovem de cor, de 20 anos de idade se tanto, dirigia a orquestra e os músicos.” Admirados observam: “Regia como Stokowski negro.”- Referência a Leopold Stokowski maestro dos EUA conhecido por reger sem batuta. A comparação é notável, pois indica a promoção que o pentecostalismo deu às pessoas humildes em funções chaves na igreja. Algo que somente na década de 1960 os sociólogos começaram a pesquisar com afinco.

A música realmente ganha destaque como um todo. Constataram os ilustres visitantes que “Assembleia de Deus ensina a palavra de Deus através da música e leva a Deus os pedidos dos homens pela letra de hinos e salmos”. Muito mais que simples parte do programa, os hinos (juntamente com a palavra) eram a própria pregação, oração e adoração a Deus.

A postura dos membros também é digna de apreciação: “Não se nota na igreja um vestuário que destoe da simplicidade do ambiente”. Com sua composição social basicamente de classe média ou operários, segundo os editores, não havia integrantes da religião “comodista e sedentária”. A Assembleia de Deus não era somente uma igreja de pobres, mas de simplicidade e temor de Deus. Um exemplo de bom senso para os dias atuais.

No dia da visita, pastor Cícero Canuto de Lima ministrava no culto. Diferente de outras denominações evangélicas, nada o diferenciava dos membros no vestir. Na prédica “não havia retórica”, mas se expressava “na linguagem simples da gente do povo, justamente para se fazer bem compreendido por aqueles que o ouviam”. Era uma mensagem serena sem exageros ou “arroubos de oratória”, mas que cativava os ouvintes.


Terminada a pregação, levanta-se um irmão “magro, alto, faces enrugadas” com uma “velha Bíblia de capa preta abraçada carinhosamente ao peito”. Naquele momento, ao olhar para o alto, o rosto enrugado se ilumina e um discreto sorriso lhe é possível observar. A voz daquele crente então se eleva numa “súplica comovente e ardorosa”. O clamor enche o tempo e todos o escutam atentamente. “Um sopro de beatitude invade a igreja”, e um silêncio comovente toma o ambiente.



Naqueles momentos de sacro silêncio, só se ouve - primeiro timidamente e depois com mais força e vigor - “as notas solenes e pesadas da música do órgão. É Emílio Conde que toca o instrumento com maestria e sentimento, enquanto permanece a contemplação silenciosa dos fiéis. A notas emanadas do órgão é “como uma música chegada do céu”. Há uma ordem no culto, onde a reflexão e a reverência não destoam de o verdadeiro mover de Deus entre seu povo.

Porém, a ordem do pastor, todos começam a entoar um louvor empolgante. Acompanhando o coral e a orquestra, a igreja exalta a Deus. “Todos cantam no templo, moços e velhos, negros e brancos, na confraternização solidária da crença.” Esse é o verdadeiro Evangelho de Cristo: a união da humanidade na fé e no amor cristão.

Subitamente, pastor Cícero direciona os músicos e a congregação que toquem e cantem o hino “Às Armas”. Enquanto cantam o hino, a imagem que se tem é de um batalhão. “São soldados de Deus preparados para a luta, que cantam seu hino de combate.” Com entusiasmo e postura militar louvam e se preparam para a batalha cujo principal objetivo é resgatar “as ovelhas desgarradas”; “prontos para a luta árdua da evangelização. ”

Essa era a Assembleia de Deus em São Cristóvão em 1945. Igreja mãe de muitas outras Assembleias de Deus espalhadas pelo Brasil e na época referencial para o movimento pentecostal no país. O quanto dela ainda restou?



Fonte: Revista da Semana. Rio de Janeiro, ano XLVI - nº 28 - 14/07/1945. pág.11-17, 50.


* Texto originalmente publicado no Mensageiro da Paz de fevereiro de 2016.

Comentários

  1. Atualmente há desdém por esses tempos de ouro de nossa igreja. Querem reinventar a roda. Os resultados estão aí, esfriamento espiritual e mundanismo. Salve-se quem puder.

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  2. Maravilha Muito Bom Lembrar mos nossa historia

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  3. Olá irmãos,que a paz do Senhor Jesus esteja com vocês. Esse post foi muito interessante, porque nos induz a algumas análises e reflexões. É evidente que o contexto socioeconômico dos membros da AD é completamente distinto do que há 70 anos atrás, hoje temos um esclarecimento intelectual e um acesso a informação e conhecimento muito maiores, mas uma coisa que nunca deveríamos perder, e que infelizmente temos deixado escapar entre os dedos, é a simplicidade e fervor espiritual verdadeiros, causados por um coração realmente inflamado com o fogo genuíno do Espírito Santo. Sou jovem, tenho 26 anos de idade, mas acredito que é bom olharmos para os fatos que ocorreram no passado, tendo em vista uma reflexão positiva do presente, para uma correta aplicação no futuro.

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