Incidente em Antares – Uma reflexão sobre a fé cristã


O livro Incidente em Antares do grande e saudoso escritor gaúcho Érico Verissimo, é sem dúvida alguma uma obra-prima da literatura nacional. É o tipo de livro, em que o autor nos convida a diversas reflexões políticas, filosóficas, sociológicas e... teológicas!

Para quem nunca leu o romance, e nem o conhece, pode passar simplesmente como uma ficção, onde mortos ressuscitam e se apresentam em decomposição na praça central da cidade. Porem é necessário esclarecer alguns pontos e ressaltar certas lições de grande atualidade.

Antares é uma cidade fictícia, localizada no Rio Grande do Sul. Ao relatar a origem e desenvolvimento de sua povoação, o escritor vai contando; através desse município, um pouco da história do Brasil e do próprio Rio Grande do Sul. A ascensão e decadência do coronelismo nessa parte do país, bem como a dinâmica social, são retratadas com argúcia e inteligência pelo autor.

Antares é na verdade uma síntese do Brasil na era do pré-golpe de 1964. Nela encontramos os antagonismos de uma sociedade polarizada, dividida e em crise. Políticos conservadores, corruptos, lideres sindicais, divisão de classes, ricos insensíveis, favelas e pobreza extrema, agitação social e política, são alguns dos elementos trabalhados pelo o escritor para retratar o país (o macro) nesse microcosmo perdido em algum lugar em terras gaúchas. 

Dentro desse quadro de polarizações e radicalismo, encontramos também dois extremos da vivência da fé católica. De um lado encontramos o Padre Gerôncio. Descrito com um sacerdote idoso (daí o nome simbólico de Gerôncio), ele é a representação do conservadorismo religioso. Apegado aos valores antigos da religião católica, tem horror a mudanças que ameacem à ordem constituída. Reza suas missas com total dedicação, mas fecha os olhos aos problemas vitais do ser humano.

No outro extremo nos é apresentado o padre Pedro Paulo. Descrito como jovem e “perigosamente bonito” é o símbolo da guinada que uma parte do catolicismo romano deu a partir dos anos 60. Nele encontramos a chamada “opção preferencial pelos pobres”, pois além de jovem (contrastando com o velho Gerôncio) ele desenvolve seus trabalhos sociais e espirituais na Vila Operária e numa favela intitulada ironicamente de Babilônia. 

Pedro Paulo é critico, moderno e causa horror aos conservadores. Dispensa a batina e anda de sandálias, mangas de camisa e calça de brim. Participa de reuniões políticas e sindicais. Critica a defasagem existente entre o acúmulo de riquezas por parte dos grandes estancieiros e a população subnutrida das favelas da região. Por essas razões é chamado de “padre vermelho” pelos poderosos, ou seja, é identificado como um comunista.

Sobre sua postura e ação pastoral ele mesmo explica no romance: “O importante é ser cristão. Mas dum cristianismo militante e não apenas teórico “simpatizante”. Sempre digo ao vigário da Matriz de Antares: “Padre continue rezando pelos seus mortos que eu continuarei lutando pelos nossos vivos. Nossa igreja é desse mundo”.

Por ser jovem e bonito (seria chamado hoje pela mídia de padre galã) Pedro Paulo faz sucesso com as mulheres, mas se mantém fiel a sua vocação. Porém como ninguém é de ferro, é revelado no contexto da história uma paixão platônica vivida pelo jovem sacerdote. Valentina é o nome da mulher que deixa Pedro Paulo perturbado e confuso. Esposa do juiz de Direito da cidade, Valentina é uma mulher de grande carisma e beleza, porém está “enjaulada” como diz o autor, num casamento com um homem conservador e totalmente oposto a sua personalidade. 

Eles conversam muito, trocam idéias e livros, tem identificação mútua, mas é impossível vivenciar um amor real. Pedro Paulo é fiel ao seu sacerdócio, à opção pelos pobres, e ela por sua vez fiel ao seu casamento e aos filhos, mesmo tendo que se anular como pessoa dentro dele.

Em certo ponto da história um amigo lhe questiona: como é sua fé em Deus? Tem ele dias e horas de dúvida? Pedro Paulo responde sim que ele sente angustias, desejos e muitas dúvidas. Revela que ao passar por um período de crise escreveu uma carta confessional ao seu superior e diz com sinceridade: “sinto que minha fé está presa apenas por um fio”. 

A resposta é um bálsamo para ele, pois seu superior lhe diz que se alegrava em saber que sua fé estava por “um fio” e lhe revela que na verdade não confiava em “fés inabaláveis” do tipo que se julgam com poder para deslocar montanhas. Seriam muito teatrais e superficiais e ensina: “O fio que prende a sua fé deve ser do melhor aço e portanto resistente e ao mesmo tempo flexível. Fé sem flexibilidade, fé sem dúvida pode acabar em fanatismo”.

Que grande lição encontramos nesse texto! Seria bom que os grandes pregadores da prosperidade lessem essa reflexão. Pois o que se encontra nas mensagens atuais em sua maioria é justamente o oposto. O cristão não pode ter dúvidas e não pode ser humano. Sua fé deve ser impermeável à dúvida ou qualquer coisa parecida. Não pode questionar. É massacrado psicologicamente e espiritualmente, e com certeza levado ao fanatismo, e desse fanatismo a uma decepção extrema.

Todo evangelho pregado que despreza a condição humana, que implanta no coração da humanidade uma ilusão de invencibilidade e de superpoderes é farsa e demagogia pura. Fica a bela lição do saudoso romancista.

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