Virgil Smith e o silêncio da história

Dentro da história das Assembleias de Deus no Brasil se destacam alguns missionários norte-americanos. E cada um deles é lembrado pela historiografia da denominação com características e virtudes bem definidas. Por exemplo: Lawrence Olson é o ensinador e teólogo; Orlando Boyer é o escritor pentecostal; Bernhard Johnson Jr. é o pregador, o evangelista de grandes cruzadas; J. P. Kolenda (era de nascimento alemão, mas foi enviado pela igreja dos EUA) o desbravador, um dos construtores da CPAD, defensor do ensino teológico.

E o missionário Virgil Smith? Como ele é apresentado pelos historiadores da AD? Na verdade, Smith é um caso controverso dentro da história assembleiana. Caso tivesse permanecido na AD, com certeza hoje seria lembrado como um dos grandes pioneiros, um homem à frente do seu tempo (como no caso Kolenda). Mas por ter desembarcado da AD nos anos 50 e migrado para outras formas de pentecostalismo que estavam implantando as mais novas formas de evangelismo no país; Virgil se tornou um caso para ser esquecido.

Smith quando era pastor em Joinville: influenciou vários lideres de SC

E por qual razão isso aconteceu? Existem algumas pistas para explicar esse esquecimento. Em primeiro lugar, os missionários norte-americanos (hoje tão cultuados dentro da história da AD) foram aceitos pelos suecos  para atuar no trabalho pentecostal da AD com muitas ressalvas e desconfianças. Na verdade os suecos não queriam que os norte-americanos viessem para o Brasil, e sim que escolhessem outros países da América do Sul para trabalharem. Como disse Gedeon Alencar, os suecos queriam impor uma "reserva de mercado" para si. Porém houve um acordo com a Missão dos EUA para que seus obreiros trabalhassem em cooperação com a AD no Brasil. Mas essa colaboração dos estadunidenses deveria estar condicionada a sujeição e aos métodos de trabalho da liderança brasileira.

Virgil ao ingressar na AD aceitou essas condições, mas com o tempo percebeu que poderia se aventurar, experimentar novas formas de evangelismo e pregações. Ao sair da AD, ele renuncia as imposições dos suecos e brasileiros as quais se moldou durante tantos anos e assim se torna um renegado. Renegados na história da AD são banidos ao esquecimento, pois não são exemplo para os fieis. Para eles o que resta é o silêncio oficial.

Encontramos um exemplo disso na revista do cinquentenário da AD em Joinville editada em 1983. Ao traçar um perfil de Smith como missionário, líder e administrador, o texto termina simplesmente informando que ele se transferiu para São Paulo. O livro comemorativo do Jubileu de Diamante da AD* joinvilense em 2008 já avança em informações, pois além dos dados encontrados na revista do cinquentenário, a obra atualiza informações biográficas e de forma diplomática revela o destino e os trabalhos que Virgil desenvolveu em São Paulo e Brasília. Porém, não há uma linha e nenhuma alusão a sua saída da AD.

No livro História da CGADB, há um registro interessante sobre Smith. Na Convenção  de 1964 em Curitiba ocorre a informação de que uma comissão de pastores fora designada para tratar do caso (sinônimo de problema) dos missionários Gustavo Bergström e Virgil Smith. O problema era que Bergström estava ajudando seu antigo colega nas cruzadas evangelísticas em São Paulo. Ao ser reprovado por tal atitude na CGADB em 1966, duas coisas foram consideradas: os costumes do missionário não se coadunavam com os princípios da AD brasileira, a abertura de trabalhos em São Paulo com apoio de pessoas alheias às AD.  Segundo o relato oficial, Gustavo Bergström teve que confessar seu erro e prometer "jamais trabalhar fora dos princípios de cooperação mútua que os missionários americanos se comprometeram com a Convenção Geral das ADs no Brasil..." (Daniel p.373)

Percebe-se nesse episódio claramente o pecado capital de Smith: trabalhar fora do modelo assembleiano. Modelo esse aceito pelos norte-americanos, mas renunciado por Virgil fazendo dele um concorrente em potencial dos cardeais da denominação.

É com Jason Tércio em seu livro Os Escolhidos, que se encontram informações interessantes sobre Virgil Smith. Tércio, filho de pastor assembleiano, jornalista conceituado, sem vínculos denominacionais, traça um perfil revelador das aspirações e da carreira do missionário. É ele quem diz que a AD não mais satisfazia Virgil. Fala de como Smith desejava experimentar as táticas evangelísticas inovadoras trazidas pela Quadrangular. Revela suas vicissitudes ao ser ridicularizado pela imprensa sensacionalista de São Paulo, e dos processos judiciais que teve que responder por ser acusado de exploração da credulidade pública. Informa ainda seus empreendimentos editoriais, fonográficos e comerciais, e sua instalação na nova Capital Federal nos anos 60, para ali construir um grande tabernáculo de alvenaria para pregar o evangelho.

Ao comparar as informações disponíveis sobre Smith, se percebe a princípio o silêncio da historiografia oficial, pois o objetivo da mesma é relatar somente o que o então pioneiro construiu em prol da denominação. Com o passar dos anos, com muitas lideranças (inclusive Smith) já desaparecidas, as quais na época se sentiram incomodadas e desafiadas por ele; a história oficial "vaza" informações não tão edificantes, anteriormente revelados por um jornalista de linhagem assembleiana.

O certo, é que sua biografia ainda incomoda. Sua dissidência trouxe prejuízos para a liderança da AD. Virgil Smith se tornou um renegado, um traidor, um caso para ser esquecido e ignorado. Hoje é lembrado pela AD,  de certa forma foi reabilitado, mas ainda permanece sobre sua vida o estigma de ser um dissidente.

* Livro esse de coautoria do autor desse blog. Obras institucionais e comemorativas, financiadas por uma empresa ou denominação, constituem-se em uma "camisa de força" para quem o escreve. Diplomaticamente, tratou-se da saída de Virgil porque o objetivo da obra em si é engrandecer os líderes e a denominação, dando somente uma versão grandiosa e edificante dos fatos conhecidos.

Fontes:

ALENCAR, Gedon. Assembleia de Deus-origem, implantação e militância (1911-1946). São Paulo: Arte Editorial, 2010.

ARAÚJO, Isael de. Dicionário do Movimento Pentecostal. Rio de Janeiro: CPAD, 2007.

DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de Janeiro: CPAD, 2004.

FRESTON, Paul. Breve História do Pentecostalismo. In: ____. Nem anjos nem demônios; interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.

SANTOS, Ismael. Raízes da nossa fé: A história das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus em Santa Catarina e no Sudoeste do Paraná. Blumenau: Letra Viva, 1996.

TÉRCIO, Jason. Os Escolhidos - a saga dos evangélicos em Brasília. Brasília: Coronário, 1997.

Comentários

  1. Mano, seus artigos são primorosos e elucidatórios! Parabéns!

    Precisamos conversar sobre uma idéia que tenho p meu TCC, manda teus telefones para reflexoesnocaminho@gmail ou para o mario_teclado@hotmail.com

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  2. Sou Carlos Castro - Historiador da AD aqui no Ceará. Estou no 4º volume em que falo de Virgil Smith em sua passagem pelo Crato. Preciso ter contato com o irmão. meus links: www.portaljvd.com.br - face, carlos castro castro e portaljvd. Maravilhosos os seus artigos.

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