A Assembleia de Deus segundo Erico Verissimo

O livro Incidente em Antares (1971) é uma das últimas obras do escritor gaúcho Erico Veríssimo (1905-1975). Escrito durante a vigência do Regime Militar, a história é uma irônica crítica que o autor faz não só ao regime com suas repressões e censuras, mas a toda sociedade brasileira. Ao criar uma cidade fictícia e uma história tão inusitada, o escritor na verdade prepara seus leitores para o desnudamento das hipocrisias e perversidades, a qual estão encobertas sob nomes dignos como moral, tradição e religião.


No romance, como é próprio das histórias de Veríssimo, muitos personagens são estereótipos da realidade, ou uma síntese de situações históricas, as quais o romancista deseja denunciar. Além disso, a obra retrata com muita peculiaridade o clima político existente no Brasil antes do golpe de 1964.

Antares é uma síntese da sociedade brasileira, onde o autor apresenta com ironia e bom humor em alguns momentos, e com dramaticidade em outros, o que se passava na nação antes do golpe político-militar dos anos 60. Entre os muitos personagens representativos da sociedade, uma delas nos chama à atenção pela observação arguta do grande escritor.

Naquela manhã, cerca das sete horas, Acácia entrou no gabinete do prefeito de Antares para fazer a limpeza de rotina. Sofria de elefantíase e movia-se com pesada lentidão dum paquiderme. Costumava trabalhar resmungando todo o tempo para si mesma e para as almas, os anjos e os demônios que sentia permanentemente ao seu redor... Todas as manhãs, tirante a de domingo, antes de começar a limpeza da peça, Acácia costumava ajoelhar-se diante da imagem do Pai dos Pobres e recitar atabalhoadamente uma oração. Em geral um Padre-Nosso. A negra velha era a encarnação dum curioso sincretismo religioso. Macumbeira, mãe-de-santo, devota de São Jorge, ela também ia à missa aos domingos, fazia promessa a Nossa Senhora, e de vez em quando se confessava e comungava. Ultimamente dera para frequentar a Assembleia de Deus, pois lá enc ontrava a oportunidade, que a encantava, de entoar hinos com os demais crentes. (p. 301-302)

É interessante como Veríssimo retrata a personagem. Acácia é descrita como uma senhora pobre, de origem simples, com um trabalho humilde, a qual encarna segundo a ótica do autor a extrema religiosidade popular.

Ela é católica, macumbeira e pentecostal ao mesmo tempo. Convém lembrar, que o sincretismo religioso observado pelo escritor foi uma situação histórico-religiosa construída em muitos anos pelos escravos e seus descendentes no período da escravidão. Impossibilitados de praticar seus cultos aos deuses de sua religião, forçados a se cristianizarem, os escravos camuflaram seus deuses e crenças na adoração aos santos católicos. Então a referência ao sincretismo de Acácia é uma constatação de uma realidade histórica vivida em todo o Brasil por milhões de afrodescendentes.

Porém o que chama à atenção é o destaque dado à outra opção religiosa que se apresentava para esta senhora. Diz o romancista "Ultimamente dera para frequentar a Assembleia de Deus, pois lá encontrava a oportunidade, que a encantava, de entoar hinos com os demais crentes".

Algumas considerações podem ser feitas a partir desse texto, o qual de certa forma revela não só as impressões do autor sobre o movimento pentecostal representado na Assembleia de Deus, como a própria constituição do pentecostalismo naquele momento.

Em primeiro lugar encontra-se a constatação da expansão geográfica da Assembleia de Deus. Antares como já se observou é uma cidade fictícia, onde os personagens e situações são representações da sociedade brasileira. Mas, mesmo na ficção a Assembleia de Deus aparece como representante do movimento pentecostal.

Nesse caso se tem a constatação real e irônica da frase que diz "onde houver Coca-Cola e uma agência de correio ali há uma Assembleia de Deus". Mesmo na imaginária cidade de Antares a igreja tem o seu espaço garantido. Ou seja, a simples menção da igreja, revela que o escritor percebia como a denominação já estava espalhada por vários municípios gaúchos e brasileiros.

Em segundo lugar é o nível social de seus membros ou frequentadores. Acácia é uma senhora doente, de emprego e ganhos humildes, pouca escolaridade e de uma credulidade extrema. A observação do romancista somente comprova o que a história do pentecostalismo já ressalta. A grande parcela de membros das igrejas pentecostais são na sua maioria pessoas de menor renda, escolaridade e consequentemente de menor acesso as oportunidades de crescimento social.

E por último se verifica a forma de protestantismo popular e participativo apresentado por Veríssimo. Longe do elitismo de algumas igrejas históricas, na Assembleia ela podia cantar com os demais crentes. Ao invés de ser uma mera expectadora, Acácia se sentia uma protagonista do culto evangélico.

É interessantíssima a observação, pois resgata a lembrança de que o pentecostalismo cresceu como um movimento religioso de leigos, com pouca diferenciação social entre seus membros e líderes. Hoje, obviamente em algumas igrejas, principalmente nos centros urbanos mais desenvolvidos percebem-se as diferenciações sociais onde o membro comum não encontra mais espaço na liturgia, sendo um mero expectador do culto evangélico.

Com as transformações sociais ocorridas desde a publicação do romance, muita coisa mudou dentro da Assembleia de Deus. Permanências da representação que o escritor fez ainda são visíveis; porém transformações também ocorreram e são perceptíveis aos estudiosos do pentecostalismo.

Caso estivesse hoje presente em nosso meio, qual seria a representação da Assembleia de Deus que o grande escritor faria? Identificaria seus membros com as classes mais humildes da população? E os cultos? Seriam ainda participativos, ou aos fieis seria dado simplesmente a oportunidade de contribuir com seus dízimos e ofertas? Perceberia o renomado escritor, a influência da famigerada teologia da prosperidade nas pregações e cânticos?

A resposta é um belo exercício de imaginação.

Fontes:

FRESTON, Paul. Breve História do Pentecostalismo. In: ____. Nem anjos nem demônios; interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais; sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.

VERISSIMO, Erico. Incidente em Antares - 49. ed.-São Paulo: Globo, 1997.

Comentários

  1. Penso que as representações do estereótipo assembleiano estão atualmente no cinema brasileiro. Onde tem pobre normalmente tem um assembleiano estereotipado. Veja algumas filmes e reflita sobre isso.

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  2. Olá, foi a primeira vez que lí este Blog e aimpressão foi boa, principalmente este texto. Sobre o "esteriótipo" do assembleiano, prefiro utilizar a categoria perfil. Sobre isto escreví um pequeno texto no Jornal da AD aqui em BNU http://www.ieadblu.com/materias/quem-sao-os-pentecostais-no-brasil

    um abraço

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  3. Minha familia esta na Assembleia de Deus de Santa Catarina desde 1932,ja estamos na quinta geraçâo nesta Igreja, meu estado sofreu muito com traidores,mas nelhum deles terminou bem,seria bom tambem lembrar o Evangelista Marquione que depois de fundar muitas Igrejas morreu abandonado e esquecido,porem evangelizou ate a sua morte grande amigo de J.P.kolenda
    Pr. Moabel

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  4. "Além disso, a obra retrata com muita peculiaridade o clima político existente no Brasil antes do golpe de 1964."
    será? mesmo que foi um golpe. nao foi o senado que passou o poder?? como nos nossos dias em 2017 pode volta acontecer, e vai ser outro GOLPE???

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